quarta-feira, 19 de junho de 2019

Anestésicos

Àquela altura, o frio rotineiro não me machucava mais. Ao contrário, ele me anestesiava dos meus rasgões internos, dos retalhos de mim que se amontoavam pelo apartamento minúsculo. Meu corpo ansiava pelo frio para apagar da memória o fantasma pálido que me consumia em ardor. Mas, entre dores e torpores, havia algo que me mantinha são: a escrita. Eu encontrava nas palavras um refúgio para meus pensamentos tortuosos. Eu transformava em versos minhas memórias incoerentes. Eu fazia da minha poesia gente para não me sentir sozinho. Eu dançava com as minhas palavras para não ter que dançar com a loucura.
É claro que eu não queria escrever hoje, tudo parece bem pior quando eu coloco no papel, como uma ferida aberta. Mas eu não podia, não podia deixar isso pra lá. Os dias são frios e a monotonia me engolem aos poucos. Por que será que não me lembro do timbre da sua voz? Ou da textura da sua pele? O tempo é devastador e me tira essas pequenas lembranças. Tudo que me lembro de você não é fiel, nunca será. Eu só queria um pouco mais do que esse fantasma pálido que mora na minha mente, que eu estou aprendendo a odiar. Porque amá-lo me machuca e meu corpo já não tem mais espaço para ferimentos. Só me perdoe por ser tão egoísta. Eu simplesmente prefiro o vazio à dor. Espero um dia voltar a sentir e a lembrar. Só espero que não seja tarde demais.

Vilã

Todos os dias, minha maior batalha é suprir minhas próprias expectativas, organizar o caos que me confunde e sobreviver aos ácidos que a vida joga na gente aqui e ali. Poucos sabem, mas tudo me machuca e minha figura sempre forte e contida é cuidadosamente lapidada à cada instante. Minhas dores poéticas não são nada agradáveis e minhas overdoses de melancolia corrompem meu raciocínio. Nem meu pacto com a morte me salva de mim, nem mesmo ela consegue me livrar do peso de mim mesma. Eu sempre dou tudo de mim e o que sobra é falho, tem medo e é humana, essencialmente humana. Glorifico minhas falhas, tento acertar, para não ter que consertar, mas me pego consertando. Por que não aceitam meus erros? Minhas mãos são comuns, não perfeitas. Minha mente é caótica, não organizada e lógica. Meus acertos são humanos, não obra de super-heróis. Não sou nem um pouco heroína, sou uma vilã procurando apenas redenção todos os dias.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Pássaro vibrante

Esgueirei-me por entre as falhas,
corri das acusações,
caí entre agulhas e palhas,
queimei dentre as canções.

Fui pássaro vibrante
que às cinzas retornou.
Num estouro fumegante,
enfim se dissipou.

Matei a mim mesma,
você pode me ouvir?
Da minha própria aspereza,
impossível é fugir.

Sou meu próprio inimigo.
Saboto-me, descamo-me,
mas das cinzas vou retornar.
E, sozinha, voltar a voar.





                       Valéria Mares

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Sobre ser

Eu sou o que você teme, mas, ao mesmo tempo, admira. Eu sou a coragem que você reprime, o impulso contido e sufocado dentro de você. Me julgas por não conseguires ser como eu, por não conseguir se libertar, como eu. Eu sou o que destrói seu ego, esmaga sua confiança, nada em tuas lágrimas com calma e tranquilidade. Não te quero mal, só quero que aprenda, que seja. Gente que é deixa os outros serem também. Gente incapaz de ser atormenta quem tem essa ousadia. Eu sou eu mesma e isso te incomoda.
Seja e deixe ser. Descubra teu interior e mergulhe nele sem medo ou receio, sem culpa, sem ouvir conselho. Meu medo é o mundo de farsas, de máscaras que podem ou não cair. Meu medo é de ser verdadeira em um mundo de mentiras.




Valéria Mares

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Impostor

Não sou eu,
você se enganou.
Desculpe, senhora,
mas eu sou um impostor.

Não fui eu,
você está errado.
Com licença, rapaz,
mas eu estava do outro lado.

Sim, agora sou eu.
O que errou, o que sofreu.
O falho, o impostor,
não digno de tanto amor.

Impostor, fui eu a usurpar.
Não mereço aqui estar.
De mim, só sinto rancor
de ser sempre um impostor.


  Valéria Mares.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Perdas

Se dizia poeta,
mas perdia as palavras.
Se dizia bonita,
mas perdia os reflexos.
Se dizia feliz,
mas perdia os sorrisos.
Se dizia forte,
mas perdia a coragem.
Se dizia inteligente,
mas perdia as contas
de quantas perdas
teve que enfrentar.




       Valéria Mares

Olhos em fogo

Queima,
em brasa.
Quebra
a taça.
Grita, esperneia.
Incendeia
sua raiva contida,
sua mente contrita.
Olhos em fogo
para a nudez do corpo.
É tudo uma trapaça,
a visão embaçada.
Não vê a dor,
tudo é calor.
Lábios em chamas,
olhos em fogo.
Queima.
Estou em brasa,
queimada pela sua falta.
Mas a dor tem sua graça.
O amor pode queimar,
a dor, incendiar.




                     Valéria Mares

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Chuva de lembranças

A chuva me lembrava das noites em que passávamos na janela do seu apartamento vendo as luzes da cidade, ouvindo buzinas e aviões decolando. Tua voz era mansa a me contar histórias da infância, travessuras que nunca vou esquecer. Nossos risos ecoam na minha mente enquanto cada lembrança cai como gota de chuva na minha memória. Saudade é como um temporal em cima da gente, aquele desconforto gelado no coração de quem perdeu algo importante pelas ruas ensopadas e desertas de uma cidade cheia.

                       Valéria Mares


segunda-feira, 4 de maio de 2015

Promessas não me satisfazem

E promessas não me satisfazem mais como antigamente. Tudo que eu fazia era sonhar, imaginar e para mim já estava bom. Mas, hoje, vendo o passar dos anos e o correr do mundo, nada disso significa mais nada. Sonhos só são bons quando se tornam metas. E minha meta hoje é parar de imaginar e colocar as coisas em prática de uma vez. Não me faça promessas, elas não me tocam mais. Palavras, escritas ou faladas, não tem poder sozinhas. Por isso, guardo meus sonhos em caixinhas, prontas para serem abertas quando cada chance surgir.






                     Valéria Mares